quarta-feira, 27 de novembro de 2013

O ASSASSÍNIO DE JESSE JAMES PELO COBARDE ROBERT FORD (2007)

PONTUAÇÃO: MUITO BOM
Título Original: The Assassination of Jesse James by the Coward Robert Ford
Realização: Andrew Dominik
Principais Actores: Brad Pitt, Casey Affleck, Sam Rockwell, Jeremy Renner, Sam Shepard, Paul Schneider, Garret Dillahunt, Mary-Louise Parker, Brooklynn Proulx, Dustin Bollinger, Michael Parks, Ted Levine, Zooey Deschanel

Crítica: 

A NOSTALGIA DO OESTE

Do you want to be like me, or do you want to be me?


A morte assombra o belíssimo O Assassínio de Jesse James pelo Cobarde Roberto Ford, demorando-se desde o título. Embora a extensa inscrição só se faça no ecrã 160 minutos depois do início do filme, sabemo-lo de antemão, quando muito não seja pela História ou pela lenda que o cinema ajudou, durante décadas, a imortalizar. Haverá um assassínio, o assassinado é o admirado ou odiado herói - aqui desconstruídodesmistificado e humanizado - Jesse James e o assassino é Robert Ford, apelidado de cobarde. A estilizada visão de Andrew Dominik dá voz e espaço a ambas as personagens; neste retrato, nenhuma delas fica na sombra. E o adjetivo marca presença porque tem importância: o filme não deturpa a memória herdada pela oralidade ou pelo legado escrito do assassino do lendário fora-da-lei, antes é-lhe fiel. Sabemos, pois, o que vai acontecer. Resta saber como, de acordo com a perspetiva.

Desde o momento em que a luz invade a tela, assola-nos a nostalgia do velho oeste e a música melancólica e envolvente, que marca a cadência e a pulsação narrativa. A impressionante fotografia de Roger Deakins encerra a beleza em cada frame, contribuindo, não obstante, para o desencanto da abordagem, desfocando tantas vezes a moldura, jogando com a iluminação soturna, captando as atmosferas e as temperaturas: o calor das searas ao vento ou o frio da neve e do horizonte invernoso. A paisagem, o céu, as nuvens. Sente-se a passagem do tempo. Excelente fotografia, nos enquadramentos e na evolução da esmerada mise-en-scène. Para acentuar o tom sôfrego e dramático, na morosa espera pela tragédia anuciada, as magníficas composições musicais de Nick Cave e Warren Ellis (uma das melhores bandas sonoras da década). Aliada ao poder da imagem, a música tem um poder preponderante no desenrolar da ação: embala e define o compasso, pela repetição, e o ritmo impõe-se lento, meditativo, a descritiva narração introduz as sequências sem qualquer pressa, como num acto de contemplação e de pura degustação. Este não é, portanto, um western de ação desenfreada ou outro típico do cânone go género, é um estudo moral mas muito mais um estudo psicológico das personagens, principais ou secundárias, na sua ambiguidade, à medida que se saboreiam longas conversas. O argumento é, todo ele, um exercício de grande e inteligente construção, de respiração e de espaço. Potencia a dimensão das interpretações, tão seriamente modeladas pelos atores. Brad Pitt, enquanto Jesse James, é de uma entrega absoluta, visceral. O seu olhar impiedoso e calculista enquanto bandido, cada vez mais imprevisível, e o contraste enquanto marido e pai extremoso... deixam-nos certos de que estamos perante um dos seus melhores papéis. E há que dizer o mesmo do brilhante e surprendente Casey Affleck, sempre de sorriso parvo no rosto, que desempenha um inesquecível Robert Ford - o cobarde que cresceu idolatrando o já então lendário Jesse James, procurado pelas autoridades e herói de livros de bolso.

If you'll pardon my saying so, I guess it is interesting, the many ways you and I overlap and whatnot. You begin with our Daddies. Your daddy was a pastor of the New Hope Baptist Church; my daddy was a pastor of a church at Excelsior Springs. Um. You're the youngest of the three James boys; I'm the youngest of the five Ford boys. Between Charley and me, is another brother, Wilbur here, with six letters in his name; between Frank and you was a brother, Robert, also with six letters. Robert is my Christian name. You have blue eyes; I have blue eyes. You're five feet eight inches tall. I'm five feet eight inches tall. Oh me, I must've had a list as long as your nightshirt when I was twelve, but I've lost some curiosities over the years.  
Robert Ford

Agora com dezanove anos, Robert mantém o fascínio por Jesse James, para quem os irmãos trabalham em sucessivos assaltos. No seu ar de criança, sonha integrar o bando, mas é um eterno frustrado e gozado; dessa humilhação, sofrida em silêncio, partirá a revolta para o assassínio. Robert sente-se afinal um imbecil, um inútil, a quem não é reconhecida especial qualidade ou aptidão. You're not so special, Mr. Ford. You're just like any other tyro who's prinked himself up for an escapade, hoping to be a gunslinger like them nickel books are about. You may as well quench your mind of it, because you don't have the ingredients, son - diz-lhe o também famoso irmão de Jesse, Frank James. O saudoso crítico Roger Ebert arrisca uma interpretação da qual partilho: I think I will get less disagreement when I focus on the homosexual undertones of The Assassination of Jesse James (...) There are the usual lyrical passages of Jesse playing with his kids and loving his wife, and yet all the time he and the Coward have something deadly going on between them. If Robert cannot be the lover of his hero, what would be more intimate than to kill him?* Veja-se como, assassinado o bandido, Robert o imita sobre a cama, como se lhe faltasse também a parte de cima do dedo do meio, como se doentiamente desejasse outrar-se. Veja-se como por mais de oitocentas vezes encena o papel de Jesse James, esperando o aplauso, a aceitação, na ilusão de ser alguém que não uma sombra. Poderá questionar-se a passividade com que Jesse James se deixa matar, como que vencido e traído por todos os seus braços-direitos. Mas é inquestionável a maldição que o próprio Jesse lança a todos enquanto vivo (o thriller psicológico é claro, a pressão intensifica-se a cada cena, aterrorizando os companheiros, perturbando o espectador) e mesmo depois de morto (a destruição interior de Robert, corroído pela inveja e pelo remorso, não é senão a voz e o fantasma de Jesse James ainda presente). Peter Bradshaw, a propósito, acrescenta um apontamento interessante: He [Jesse James] engineers a character-assassination of Ford, and the title, knowingly, gets it precisely the wrong way around**. Notas especiais para os formidáveis desempenhos de Sam Rockwell, Jeremy Renner, Paul Schneider e Garret Dillahunt, que asseguram a insigne qualidade do elenco secundário.

Cenas memoráveis, são mais que muitas: da admirável encenação do assalto ao comboio ao diálogo de Brad Pitt, envolto em serpentes, na cadeira do jardim de erva altiva, dos disparos sobre Wood White ao momento em que Jesse James cai da cadeira, depois de limpar o pó ao quadro. Andrew Dominik, dotado de grande subtileza e de especial brio na arte de filmar, surpreende o mundo cinematográfico ao seu segundo filme. Western poético e crepuscular, O Assassínio de Jesse James pelo Cobarde Roberto Ford é um autêntico triunfo no seio do cinema independente norte-americano e um feito absolutamente singular, já que não só o revisita o género como lhe imprime um cunho bastante próprio e fascinante. Um filme magistral, a recordar e a rever sempre. 

domingo, 24 de novembro de 2013

A VIDA DE PI (2012)

PONTUAÇÃO: MUITO BOM
Título Original: Life of Pi
Realização: Ang Lee
Principais Actores: Suraj Sharma, Irrfan Khan, Ayush Tandon, Gautam Belur, Adil Hussain, Tabu, Ayan Khan, Mohd Abbas Khaleeli, Vibish Sivakumar, Rafe Spall, Gérard Depardieu, James Saito, Jun Naito, Andrea Di Stefano, Shravanthi Sainath, Elie Alouf

Crítica:

A ARCA DE PI

In the end, the whole of life becomes an act of letting go, 
but what always hurts the most is not taking a moment to say goodbye.

A Vida de Pi é, em si mesmo, um milagre, um acto de fé. Mesmo numa era em que os efeitos digitais se superam todos os dias, atingindo tantas vezes o impossível, a dúvida perdurava à tona, sem ceder... seria viável a adaptação do consagrado romance de Yann Martel à grande tela mágica? E depois de vislumbrar o filme... e de voltar a assisti-lo, ganhando maior consciência daquilo a que realmente assisti - do  tremendo trabalho, esforço e mérito por detrás de cada cena e de cada frame -, as dúvidas dissipam-se, tornando a conclusão tão clara e transparente como o reflexo dourado dos céus sobre a paz e a imensidão do oceano. A arrojada experiência visual e artística (tantos há que se deixam cegar, a priori, pela experiência ou pelo preconceito) confunde-se com a profunda viagem emocional, num filme absolutamente mágico e inspirador.

Doubt is useful, it keeps faith a living thing. 
After all, you cannot know the strength of your faith until it is tested. 

Parábola sobre o fim da inocência, sobre a religião e o seu significado na existência humana, a fluída narrativa demora-se no prazer de contar uma pequena grande história: a história do jovem Pi, que desde cedo descobre, questiona e abraça o hinduísmo, o cristianismo, o islamismo... como se ao conhecer cada face de Deus se completasse o mistério da vida. Thank you Vishnu, for introducing me to Christ, profere a dado momento. O pai, amante da ciência, para quem a religião é obscuridade, chega a gracejar-lhe: You only need to convert to three more religions, Piscine, and you'll spend your life on holiday. E acrescenta: If you believe in everything, you will end up not believing in anything at all.

Quando se vê forçado a abandonar, na companhia dos pais e do irmão, a exuberante Índia que sempre conheceu, o zoo da família onde cresceu ou a sua primeira paixão da adolescência pela procura de uma vida melhor, percebe que a sua vida nunca mais será a mesma. Ao atravessar a Fossa das Marianas, lugar mais profundo da Terra, uma tempestade tremenda assola o navio onde seguiam e a tragédia precipita-se para o naufrágio, irreversivelmente. Espera-o uma odisseia de sobrevivência: assustadoramente traumática, fustigante, extenuante. Um verdadeiro teste à sua coragem, à sua fé, à sua força.

Sabemos da história pela voz do Pi adulto (Irrfan Khan), que desde o início no-la relata em tom de mistério, testando também a nossa capacidade para acreditar no seu testemunho. Em pleno flashback, a tragédia dá progressivamente lugar à fábula, à fascinante contracena de
Suraj Sharma com uma zebra de perna partida, uma hiena faminta, uma oragotango maternal e claro... um tigre feroz, perigoso e por demais selvagem e persistente. Animals have souls... I have seen it in their eyes. Permitam-me o parênteses: fenomenal revelação, a do agora ator; trata-se de uma daquelas escolhas de casting que não só marcaram como transformaram o destino de um talentoso mas mero rapaz dos confins da Índia numa estrela eternamente global. Mérito do próprio e de toda uma equipa que o encontrou e preparou intensamente para os desígnios que o papel exigia; Ang Lee chegou a considerar-se, inclusivé, o seu guru. Suraj Sharma transfigura-se, física e emocionalmente, a um daqueles raros papéis de uma vida. A sua entrega é total e determinante para o sucesso deste arriscado projeto. 

Das provações do deserto - que é o mar aberto - ao delirante e desejado oásis da Ilha da Abundância, repleta de suricatas, da fome, frio e solidão à difícil e exigente relação com o tigre de Bengala, de nome Richard Parker - sobre todas, a mais prodigiosa criação da equipa de efeitos digitais, tão real na textura, na robustez, na captação de movimentos... até que ponto distinguimos o tigre autêntico deste artificial? -, da caça ao cardume de peixes alados à encantatória e colorida bioluminiscência das águas e seus microorganismos, ao gigante e imponente cetáceo que, explodindo das profundezas e brilhando ao luar, vem transcender o espetáculo de puro esplendor... A Vida da Pi é um feito derradeiramente belo e maravilhoso. São 227 dias de sobrevivência e de absoluta dádiva. 

As demais virtudes técnicas, que procuram a perfeição da imagem, conferindo-lhe um determinado estilo, ecoam no assombro e na excelência da fotografia de Claudio Miranda. E a banda sonora (Mychael Danna), outra das maravilhas da obra, é como que o guia espiritual, que nos conduz pela demanda e nos faz suscitar os mais variados sentimentos. E se A Vida da Pi é obra de delicada sensibilidade ou de fortes sentimentos, ou não fosse Ang Lee o cineasta por detrás desta fantástica visão. O 3D é a ferramenta utilizada, precisamente, para intensificar ainda mais a carga emocional, muito para além dos estímulos sensoriais dos quais, sabemos, é capaz. Ang Lee é eficaz no recurso; creio, não obstante, que o filme resulta extraordinariamente bem no 2D, pelo que o 3D, não sendo fundamental, também não é acessório.

Assumindo o triunfo do filme e que, na sua maior parte, pouco mais é do que um ator, uma embarcação e um tanque de água que a pós-produção transforma mais tarde em oceano, define um horizonte e um céu glorioso e adiciona as personagens virtuais... isto faz-nos pensar muito, nomeadamente sobre a própria definição de cinema e a sua essência artística. O que importa transmitir. E, claro, na sua relação simbólica, o rumo que aquela embarcação, representando o cinema, toma...

O desfecho é chocante para todos quantos ousaram acreditar. Quantos, mesmo conhecendo a segunda versão - que, sejamos sinceros, deve mais ao realismo - não preferem acreditar na fantasia poética?  So which story do you prefer? É uma forma - mais fácil - de superar a dor. So it goes with God.  
 
Não deixa de ser curioso que certos filmes nos ofusquem pela estranheza, na primeira vez que os vemos e que, mal lhes seja dada uma outra oportunidade, nos conquistem tão seguramente. Aconteceu-me mais uma vez com A Vida de Pi, não só pela expectativa, também pelo 3D que teima em parte em distrair-me, em distanciar-me do âmago das coisas e até em causar-me algum desconforto. Ao revê-lo, finalmente concentrado e inteiramente absorvido... A Vida de Pi consegue rasgar-nos o coração, mas ao mesmo tempo reconfortar-nos o espírito. É pleno de alma, mesmo no artifício. E isso... faz toda a diferença. Que pérola de filme.

quinta-feira, 21 de novembro de 2013

O MASCARILHA (2013)

PONTUAÇÃO: MUITO BOM
Título Original: The Lone Ranger
Realização: Gore Verbinski
Principais Actores: Johnny Depp, Armie Hammer, William Fichtner, Tom Wilkinson, Helena Bonham Carter, Ruth Wilson, James Badge Dale, Barry Pepper, Saginaw Grant, W. Earl Brown, Harry Treadaway

Crítica:

O VELHO OESTE SELVAGEM

- If these men represent the Law, I'd rather be an Outlaw.
- That is why you wear the mask.

O Mascarilha invoca e glorifica, em toda a sua grandeza e esplendor, o velho e mítico Oeste Selvagem que o cinema americano, durante décadas, honrou e imortalizou. Povoa todo esse imaginário coletivo - de índios, cherifes e cowboys, soldados e mineiros, de cavalgadas pela vingança ou pela justiça, de bons, feios e vilões, de pequenas cidades perdidas entre o sol e a poeira, de saloons e casas de meninas, de furiosos comboios e intermináveis linhas férreas que desbravam cegamente as terras virgens - imaginário que lembramos desde crianças, o mesmo que os nossos pais ou avós partilharam tão entusiasticamente no passado.

O Mascarilha não inventa - não foi tudo inventado? -, tão-pouco reinventa, antes reinterpreta. A ambiciosa e arrojada produção recolhe as melhores influências e oferece um refrescante e prazeroso espetáculo sem precedentes: de ação desenfreada e de cortar a respiração, que se transcende em emoções e diversão - aqui podemos encontrar a melhor cena de perseguição de comboios de todos os tempos -, de arrebatadores grandes planos onde a paisagem a perder de vista se confunde com o horizonte longínquo, do imperioso silêncio de desertos e rochedos, sobre todos o silêncio do imponente e incontornável Monument Valley, tão contrastante que é com a grandiosa e triunfante banda sonora de Hans Zimmer. 

Em O Mascarilha dá-se, pois, o tão aguardado reencontro do western ressuscitado com as grandes massas; pena que o desempenho do filme nas bilheteiras invalide, em parte e incompreensivelmente, este meu argumento. O índio Tonto, de rosto pintado e corvo morto na cabeça - excêntrica e hilariante criação de Johnny Depp - tem mesmo razão: por estes dias, nature is definitely... out of balance.

Para as filmagens, construiram-se, de raiz, quilómetros de caminhos de ferro e três modelos de comboios, que se pretendia que fossem como personagens. Os atores percorreram mesmo o cimo de carruagens em movimento, por uma questão de realismo. É claro que há muitas maravilhas do digital ao longo do filme, mas tantas há que são reais e verdadeiras e que, por serem feitos raros nos dias de hoje, passam por artificiais. A produção da Disney e de Jerry Bruckheimer (que prime, como sabemos, o seu selo nalguns dos maiores blockbusters de Hollywood) combina habilmente - e certamente por mérito da visão e intervenção artística de Gore Verbinski - a sofisticação digital em pouco mais do que o indispensável, tanto quanto permita o budget (também esse épico, neste caso), com a melhor utilização possível dos recursos fisicos e clássicos de filmagem. O certo é que, indepentemente de todos os processos, depois da luz e do enquadramento, o requinte de cada cena, frame by frame, é imprescindível. A fotografia de Bojan Bazelli é, por isso, um feito de exímia beleza.

A narrativa é sempre muito fluída, ficcionando entre os meandros da História e alguns anacronismos intencionais que não devem senão à comédia. Os argumentistas Justin Haythe e a dupla Ted Elliott e Terry Rossio (estes últimos também da equipa Piratas das Caraíbas) concebem um filme dinâmico e pleno de ritmo, não-linear porém deveras consistente e bem construído, alicerçado no cómico de situação, no cómico de personagem e na improvável amizade entre um nativo comanche, de valores e ideias bem vincados mas perfeitamente idiota na sua ação e um recém-advogado de valores e ideias igualmente vincados (se bem que outros, radicalmente distintos) e pouco ajeitado com os tiros. O primeiro conta os minutos para vingar a pior troca que alguma vez fez na vida, que lhe ardeu a inocência e que decidiu o destino de muitos dos seus. O segundo, sabe da vida a lei suprema e teórica e tão-pouco sobre a ganância voraz, que pela fraqueza dos homens segue praticamente imune aos ideais da justiça. Num tempo em que os rangers já foram, John Reid (carismático e circunscrito herói, assumido com charme e refino por Armie Hammer), ousa lutar pela estrela ao peito. Salvo da morte pelo cavalo mais lunático de que há memória, parte na companhia do índio pelo oeste, de enorme chapéu branco ao alto, usando a icónica máscara preta, defrontando os adversários que a coragem ou a sorte decidem. Ao longo da odisseia, a esperta Red de perna de marfim (Helena Bonham Carter), o temível Butch Cavendish (William Fichtner), a bela Rebecca (Ruth Wilson), amada adiada, e o ávido e enganoso capitalista Latham Cole (Tom Wilkinson), senhor dos comboios:

From the time of Alexander the Great, no man could travel faster than a horse that carried him. Not anymore. Imagine; time and space, under the mastery of man, power makes emperors and kings... look like fools. Whoever controls this, controls the future. 

Alter-ego de Jack Sparrow, Tonto assume o protagonismo em todos os seus trejeitos e maneirismos, mas também porque é dele o ponto de vista. Lembremos o noble sauvage em exposição na feira de S. Francisco, anos 30, que conta à criança e ao espetador o porquê do cavaleiro usar uma máscara, a necessidade de também um herói poder assaltar um banco. A revisita começa aí e termina já nos créditos finais, de regresso a casa, às derradeiras origens. Deliciosa e memorável personagem, a desse camaleão maior que é Johnny Depp.

Grande filme, grande entretenimento, grande western. O tempo fará justiça a este O Mascarilha.

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

À BOLEIA com Roberto Simões

O Jorge e o Pedro Teixeira, do blogue Caminho Largo, convidaram-me a integrar a rubrica À Boleia, na qual vários autores da blogosfera cinéfila respondem a pertinentes questões sobre a 7ª Arte, entre as quais:

Quais são os principais factores para a qualidade de um filme? 

Bons argumentos com fracas realizações ou boas realizações com fracos argumentos?

 Onde se encaixa o cinema na cultura em geral?

A entrevista acabou de ser publicada. Clique aqui e leia-a na íntegra. Fica o convite.

Obrigado Jorge e Pedro Teixeira.

ÁFRICA MINHA (1985)

PONTUAÇÃO: MUITO BOM
Título Original: Out of Africa
Realização: Sydney Pollack

Principais Actores: Meryl Streep, Robert Redford, Klaus Maria Brandauer, Michael Kitchen, Malick Bowens, Joseph Thiaka, Stephen Kinyanjui, Michael Gough, Suzanna Hamilton, Rachel Kempson, Graham Crowden

Crítica

UMA CANÇÃO DE ÁFRICA

I had a farm in Africa.


África Minha é um magnífico e apaixonante romance, épico no fôlego e na escala  da paisagem, deslumbrantemente captada pela câmera de David Watkin. Pela luz - ou antes, pelas mais variadas luzes do Quénia, que tanto variam consoante o instante do dia, quase que sentimos as diferenças da temperatura, o cheiro da terra, as texturas do verde e do castanho-avermelhado, o poder reinante e pulsante de toda aquela natureza selvagem, em estado puro. Recordar África Minha será sempre imaginar a majestade do amanhecer ou do entardecer, um comboio que rasga as imensas planícies verdejantes, a savana repleta de búfalos, de girafas, elefantes ou perigosos leões, pontuada por altas acácias e bandos de aves que rasgam os céus. Sydney Pollack, dotado de hábil mestria, invoca e perpetua a África do nosso imaginário coletivo, enquanto escutamos a sonante, nostálgica e inesquecível banda sonora de John Barry, plena de sentimento, que tanto glorifica o horizonte como anuncia a tragédia no paraíso.  

If I know a song of Africa, of the giraffe and the African new moon lying on her back, of the plows in the fields and the sweaty faces of the coffee pickers, does Africa know a song of me? Will the air over the plain quiver with a color that I have had on, or the children invent a game in which my name is, or the full moon throw a shadow over the gravel of the drive that was like me, or will the eagles of the Ngong Hills look out for me? 

Talvez por isso uma personagem - verídica - tão persistente e contundente como a dinamarquesa Karen Blixen se encontre a si própria na aventura distante, excitante embora solitária, em que se torna África. Afinal, revela-se uma mulher dotada de inigualável força telúrica, consciente dos seus valores, finalmente liberta dos constrangimentos sociais que a ameaçavam e que quase lhe toldavam espírito e a essência do seu ser. Se há tema maior em todo o filme é o da propriedade ou o da ilusão da propriedade. Karen - só uma atriz como Meryl Streep poderia dar vida a uma personagem tão rica e complexa como esta - casa-se por conveniência e por vontade própria com o irmão do amado não correspondido, seu amigo, com vista a obter o título de baronesa e assim poder partir à aventura, para dar sentido à vida. Ai dos nativos que lhe toquem nos bens, que lhe são tão queridos, que logo os enxotará tão espontaneamente como enxotará, mais tarde, os temidos leões; o que deliciará o desprendido Denys (Robert Redford), tão livre de espírito como de todas as coisas, pelo qual se apaixonará.

O conflito não provém, pois, do adultério da mulher que vive uma paixão proibida. O argumento resolve a questão com uma clareza notável: cruza-se o marido com Denys e transmite-lhe: You could have asked. Denys responde-lhe: I did. She said yes. Não, o marido nunca representou muito mais do que um amigo e do que um pretexto consentido por ambos. Está sempre ausente, desligado do negócio das plantações de café, entre caçadas e mulheres, as mesmas que lhe passam a mortal sífilis que acaba por transmitir a Karen, justificando assim o regresso da protagonista à Dinamarca, para a cura, sensivelmente a meio da trama. O conflito maior não nasce sequer do machismo e ao conservadorismo dos colonialistas, tão insensível e atroz para com os nativos, com os quais se esbate Karen, mal chega ao país e a Nairobi (cidade que a direção artística de Stephen Grimes recriou com a dedicação e o engenho dos técnicos locais, que nada deviam à engenharia). O conflito nasce mesmo dessa relação apaixonada porém contrastante entre a Karen, contadora de histórias, e o misterioso e fascinante Denys. Denys é tudo aquilo que Karen sempre quis ser - absolutamente livre - no entanto é incapaz de se adaptar a alguém como ela, mesmo amando-a, em nome de um ideal, de uma forma de vida inconstante mas tão prazerosa, solitária mas de todos e do mundo.

 I'm with you because I choose to be with you. I don't want to live someone else's idea of how to live. Don't ask me to do that. I don't want to find out one day that I'm at the end of someone else's life. 

É nisto que Karen e Denys não se entendem, se incompatibilizam, preferindo afastar-se um do outro. Karen sonha casar-se; não obstante I won't be closer to you and I won't love you  because of a piece of paper, diz-lhe ele. Ela sonha tê-lo por perto, mais por perto, que ele passe mais tempo com ela, mas só de pensar na ideia de se sentir preso - ou de sentir que pertence a algum lado ou a alguém - Denys já desespera pelo escape. Pena que quando se reencontram e finalmente reconhecem que não têm alternativa senão mudar-se a si próprios a bem da relação dos dois, que o destino seja tão severo e cruel. Nunca mais voarão, juntos, de encontro ao nevado Kilimanjaru, superando todas as fronteiras.

À medida que Karen nos lê as suas memórias e nos relata fervorosamente o seu passado, África Minha assume um indelével tom poético e emocional, de despedida. Partilhamos com ela, a partir das suas palavras, uma mágoa inexplicável, pelas coisas que ficaram por dizer ou fazer, porque não foi possível. Antes dos créditos finais, somos informados que a baronesa nunca mais voltou a África e isso entristece-nos, porque não a imaginamos mais longe da savana, do seu casarão e dos criados que ajudou a escolarizar. A dor de ter pedido Denys ecoou por toda a sua vida.

It's an odd feeling, farewell. There is such envy in it. Men go off to be tested, for courage. And if we're tested at all, it's for patience, for doing without, for how well we can endure loneliness. 


A influência literária da adaptação espelha-se claramente e de forma totalmente intrínseca na criação de Pollack e restante equipa; sobretudo no ritmo demorado, que priveligia o detalhe e o correr dos acontecimentos. Certamente que para os amantes do filme se trata de uma mais-valia, nunca um defeito, que respeita e autentifica a aventura original de Karen Blixen.

terça-feira, 19 de novembro de 2013

MEIA-NOITE EM PARIS (2011)

PONTUAÇÃO: MUITO BOM
Título Original: Midnight in Paris
Realização: Woody Allen
Principais Actores: Owen Wilson, Rachel McAdams, Marion Cotillard, Kurt Fuller, Mimi Kennedy, Michael Sheen, Nina Arianda, Carla Bruni, Corey Stoll, Kathy Bates, Léa Seydoux

Crítica:

A IDADE DE OURO

I wanted to escape my present just like you wanted to escape yours. 
To a golden age.

A noite, a rua semi-iluminada de Paris, as badaladas. Num instante, o sonho invade a realidade e um insólito convite abre as portas para a impossível viagem no tempo. Que delicioso escape surrealista, o de poder visitar outras épocas, de poder pisar os locais de antes, de sentir o cheio e a aura de outrora, de conviver com as pessoas e os ídolos de antigamente... com personalidades como Ernest Hemingway, Scott Fitzgerald ou a mulher Zelda, Salvador Dalí, Luis Buñuel, Gertrude Stein ou Cole Porter que, no caso de Gil Pender (inesquecível personagem de Owen Wilson, alter-ego de Allen), povoam o imaginário mítico e adorado da Paris dos anos 20. Tornar o passado presente - Past is also present, diz o alucinado Dalí no filme, entre rinocerontes - é um desejo humano secular, mas tão mais um devaneio romântico, de artistas. Woody Allen concretiza essa visão onírica de forma absolutamente magistral, neste que é, por tantos motivos, um dos seus mais virtuosos filmes.

Nostalgia is denial - denial of the painful present... the name for this denial is golden age thinking - the erroneous notion that a different time period is better than the one ones living in - its a flaw in the romantic imagination of those people who find it difficult to cope with the present.  
Frase do pedante (Michael Sheen), que afirma conhecer o passado como se o tivesse vivido.

Há a sensação - comum a todas as gerações - de que a Idade de Ouro sempre foi, nunca será. Para Allen e Pender da atualidade, os boémios anos 20. Para Zelda dos anos 20, a Belle Epoque. Para Gauguin da Belle Epoque, La Renaissance. E assim sucessivamente. No passado é que era! Ó tempo, volta para trás! The present - Yes, the present always seems worse than the past but it can't be - to always think this generation is stupider and coarser than the last. Há sempre uma imensa sede de passado, pois the past is not dead. Actually, it’s not even past, já dizia Faulkner, como bem lembra Gil.

Tal como nós, espetadores, o protagonista ainda estranha o que lhe está a acontecer, inicialmente, mas depressa se rende ao fascínio e à fantasia:

I'm Gil Pender - I was with Hemingway and Picasso - Pablo Picasso - Ernest Hemingway - I'm Gil Pender from Pasadena - the Cub Scouts - I failed freshman English - I'm Gil Pender and my novel is with Gertrude Stein - I once worked at The House of Pies. I'm little Gil Pender. And that girl was so lovely. 

Que interessante seria, ficciona, delira, brinca. É tão engraçado assistir à conversa entre Gil e Buñuel, em que o americano lhe dá a ideia para fazer O Anjo Exterminador, subvertendo a lógica temporal das coisas. É tão engraçado ler, no presente, o diário de Adriana Dupree: I am in love with an American writer I just met named Gil Pender. É tão cómico que o detetive contratado para investigar os misteriosos passeios noturnos de Gil vá parar a uma luxuosa corte real, algures no passado histórico. É no passado que Gil se sente integrado, nunca no presente, incompreendido e mal-amado pela noiva Inez (Rachel McAdams). Na viagem, comparamos ainda cultura, arte e sociedade ao som de Porter, Offenbach, Parisi ou do para sempre associado Bistro Fada de Wrembel.

Não admira que, daqui a décadas, muitos sonhem com a Paris dos inícios do século XXI, cidade-luz que acolheu lendas do cinema como Woody Allen, notáveis atores como Owen Wilson ou Marion Cotillard, na rodagem de Meia-Noite em Paris; cidade que o cineasta tão bem retratou nos minutos iniciais da obra, como num postal ilustrado em movimento.

Que maravilhoso pedaço de cinema: ligeiro, despretensioso, embora pleno de criatividade e de vitalidade. Allen é primoroso na sua mise-en-scène, embora simples como sempre. Escasseiam as dúvidas de que se trata de mais um clássico instantâneo na sua filmografia. Nostálgica e absolutamente mágica, esta brilhante e bem-humurada ode à eterna Paris da arte e do amor.

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Nota especial para o belíssimo poster, que se funde com a arte de Van Gogh.

domingo, 17 de novembro de 2013

A ESSÊNCIA DO AMOR (2012)

PONTUAÇÃO: BOM
★★
Título Original: To the Wonder
Realização: Terrence Malick
Principais Actores: Olga Kurylenko, Ben Affleck, Javier Bardem, Rachel McAdams, Tatiana Chiline, Romina Mondello, Tony O'Gans, Charles Baker

Crítica:

OS FANTASMAS DO AMOR

There is a love that is like a spring coming up from the earth.
The first is human love, the second is divine love and has its source above.

Da arte de maravilhar parte o pensamento e a questão. We climbed the steps to the wonder. Qual câmera, eles deambulam, vagueiam, questionam. Eles amam, eles sofrem por amor (qual câmera, poderia acrescentar). Love makes us one. I in you. You in me. Malick continua a sua demanda introspetiva e metafísica, imerso numa dimensão lírica e espiritual. Amamos? Somos amados? Como é o matrimónio aos olhos de Deus, o que representa, o que significa. Porque não casa ele com ela se a ama? If I left you because you didn’t want to marry me, it would mean I didn’t love you. A insegurança de amar outro alguém, o medo de perder esse amor, o estar perto e o estar longe. O turbilhão emocional em que se compreendem os momentos de ternura e felicidade em oposição aos instantes de angústia e incerteza. A discussão como cúmulo dos continuados desabafos interiores, não exteriorizados e não comunicados, como almas desencontradas do diálogo.

O espetador ouve o grito num sussurro, enquanto vislumbra a poesia da luz, do sol e da água, das folhas e do vento. Flui a música clássica. Cada filme de Malick é um pedaço de cinema de embalar. As cenas são quase mudas da palavra entre personagens - o que acentua o efeito de estranheza - perpetuando-se a perspetiva ou as perspetivas nesse privilégio, exclusivo de Deus e do espetador, que é escutar.  

A Essência do Amor é o melodrama de um casal, mas é mais o de Marina (Olga Kurylenko), que deixa a Europa com a filha pela difícil adaptação na América, sobre a qual recai o peso de uma culpa que não é só dela, num exacerbado romantismo. Quase não temos acesso ao íntimo de Neil (Ben Affleck). É uma escolha deliberada de Malick, se bem que se coaduna com a aparente passividade da personagem, que não sucumbe ao sacrifício. Talvez por isso a personagem do ator pareça não ganhar especial dimensão. Mas o seu silêncio inquieta-nos. E mesmo quando este se aventura numa paixão passada, com a personagem de Rachel McAdams, a voz que ouvimos é a dela. Do you know what you want? A voz masculina mais presente é a do padre Quintana, distanciado da denúncia dos desejos carnais, expõe as dúvidas da sua relação com Deus e lembra Cristo: We fear to choose. Jesus insists on choice. The one thing he condemns utterly is avoiding the choice. To choose is to commit yourself. And to commit yourself is to run the risk, is to run the risk of failure, the risk of sin, the risk of betrayal. But Jesus can deal with all of those. Forgiveness he never denies us. The man who makes a mistake can repent. But the man who hesitates, who does nothing, who buries his talent in the earth, with him he can do nothing. A interpretação de Jesus ecoa por todas as histórias, espelha-se nas escolhas e ânsias dos amantes, na esperança da reconciliação. I saw you. Again.

A Essência do Amor brilha, plenamente, no virtuosismo da montagem e do movimento de câmera, na beleza assombrosa da fotografia (Lubezki), porém enfraquece algumas das suas potencialidades narrativas no carácter acentuadamente difuso que o estilo do autor aqui atinge e impõe. Um pouco mais de estruturação beneficiaria o argumento, solidificando a união dos fragmentos e norteando a inquietação filosófica.

O ÚLTIMO AIRBENDER (2010)

PONTUAÇÃO: BOM
★★
Título Original: The Last Airbender
Realização: M. Night Shyamalan
Principais Actores: Noah Ringer, Dev Patel, Jackson Rathbone, Nicola Peltz, Shaun Toub, Aasif Mandvi, Cliff Curtis, Seychelle Gabriel, Katharine Houghton, Francis Guinan, Summer Bishil, Randall Duk Kim, John Noble

Crítica:

AVATAR:
O MESTRE DOS QUATRO ELEMENTOS

I knew you were real. I always knew you'd return.

Com O Último Airbender, M. Night Shyamalan não só continua como intensifica o seu odiado percurso em Hollywood. Não só porque se afasta, aqui numa clara clivagem, da senda dos seus argumentos inquietantes, labirínticos ou plenos de suspense... que marcam o seu prisma autoral. Afinal, seria sempre uma tarefa tamanha, compreendemos, recriar em real motion um universo tão característico e querido da animé como o de Avatar. Porém, na minha opinião, que mais uma vez contraria grande parte da crítica, Shyamalan supera-se com paixão e talento. O Último Airbender não cai no ridículo, o mundo das quatro nações edifica-se solidamente sobre a verosimilhança, mérito maior da direção artística e dos tremendos efeitos digitais. A excelência dessas categorias técnicas e da aliança com a fotografia de Andrew Lesnie (o mesmo d'O Senhor dos Anéis) confere inegáveis credibilidade e autenticidade à fantasia. A magia acontece no ecrã. O espetáculo visual impõe-se, por isso, maravilhoso e esmagador.

Pena que o filme não tenha maior duração (já para não falar de sequelas), para aprofundar as personagens e a história, maturar as cenas e os momentos narrativos. O filme peca essencialmente por isso. A edição faz um autêntico milagre com o tempo que lhe foi concedido, livrando-o do desastre, contando da melhor forma possível - relativamente simples até, servindo perfeitamente o público infantil - esta complexa história de mitos e culturas, guerra e espiritualidade, destino e humanidade. A escolha do elenco revela-se acertada: destaques para Noah Ringer como Aang (o por cem anos desaparecido Avatar, mestre dos quatro elementos), Dev Patel (filho rejeitado e príncipe do Fogo, dúbio na sua ação) ou Shaun Toub (o tio Iroh, conselheiro e protetor). Duas das personagens mais bem conseguidas - até pela sua natureza secundária e artificial - são, a meu ver, as criaturas Appa e Momo. Há inspirados movimentos de câmera, que acompanham a energia da ação ou os momentos mais intimistas, que nos emocionam. Para esse efeito contribui também uma das mais sonantes e grandiosas bandas sonoras de James Newton Howard, aqui e ali com toques de John Williams.

Enfim, O Último Airbender é um daqueles filmes que ganharia tanto com uma versão alongada. Cerca de 30 minutos do filme foram eliminados porque o estúdio pretendia convertê-lo em 3D tão rapidamente quanto possível. Alguns desses minutos de cenas cortadas, já revelados no DVD, não acrescentariam muito ao filme, é certo. Quanto ao material inédito, não posso comentar, resta ter esperança. O todo revelado é tão apaixonante que queríamos mais; os admiradores estão é condenados a rever o filme as vezes que quiserem, ao invés de esperarem pela continuação.

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Não me refiro à versão 3D porque não a vi nem a preciso ver; neste caso, como noutros, não passou de estratégia comercial, como sabemos. O filme nem sequer foi concebido para ser em 3D.

sábado, 16 de novembro de 2013

O MASCARILHA (2013)

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sexta-feira, 8 de novembro de 2013

HOMEM DE AÇO (2013)

PONTUAÇÃO: BOM
★★
Título Original: Man of Steel
Realização: Zack Snyder
Principais Actores: Henry Cavill, Russell Crowe, Michael Shannon, Amy Adams, Diane Lane, Ayelet Zurer, Harry Lennix, Kevin Costner, Christopher Meloni, Antje Traue, Laurence Fishburne, Richard Schiff

Crítica:

SUPER-HOMEM - A ORIGEM

You're the answer to are we alone in the universe?

Hollywood adora fogo e destruição e o aguardado reboot do super-herói mais poderoso de todos os tempos, pelas mãos de Znyder, ostenta destruição em massa. É violento, explosivo e brutal. A um ritmo tão alucinante quanto as lutas super-sónicas dos protagonistas, flui uma ação sem limites, de cortar a respiração - a montagem ultra-rápida pode dificultar a perceção, mas contribui decisivamente para o efeito -, atingindo-se as desejadas proporções épicas, as mesmas que a apoteótica e empolgante banda sonora de Hans Zimmer reclama a todo o instante.

Homem de Aço é um blockbuster sofisticadíssimo, o último grito dos efeitos especiais - a necessidade de responder ao hype era tremenda - e que convoca e perpetua as mais variadas referências do género: de Bay (Armageddon, Transformers) a Emmerich (Dia da Independência, Dia Depois de Amanhã), passando pela manga japonesa (a saga Dragon Ball, entre tantas outras) e por Matrix ou mesmo pelo Avatar de Cameron. Dos céus, Krypton não parece senão Pandora. Até a memória do 11 de Setembro assombra o filme; quem não revê a tragédia na facilidade com que se desmoronam arranha-ceús sobre um chão de poeira e escombros. You are not alone. A catástrofe é global, mas o centro da ação é a América, como sempre. A América da origem. A câmera de Znyder treme e oscila sobre o frenesim. Os zooms multiplicam-se. Tudo é espetáculo que o 3D amplia a uma escala que transcende e maravilha o espetador. Não todo o espetador, mas certamente o espetador deste tipo de ação.

Todos invejamos o Super-Homem, todos gostaríamos de ser o Super-Homem. Bonito e atraente, forte e todo-poderoso, capaz de voar os nossos maiores sonhos. Our hopes and dreams travel with you. Compreende-se o fascínio pela personagem. Ele é o escolhido, a última esperança de um povo ou de dois, de quem depende a derradeira salvação do mundo. Pobres Jor-El e Lara Lor-Van, condenados a um destino fatídico... o risco de trair a gestação controlada e artificial de Krypton e de entregar ou abandonar o filho, ainda bebé, ao desconhecido, à imensidão do espaço. O prólogo, que abre a ficção científica, apresenta-nos essas magníficas escolhas de casting que foram Russell Crowe e Ayelet Zure, como pais de Kal. A dor da perda espelha-se intensamente nos olhos da atriz e, às tantas, também nos do ator.

Lara Lor-Van: He will be an outcast. They'll kill him.
Jor-El: How? He'll be a god to them.

Mais tarde conhecemos os desempenhos de Kevin Costner e Diane Lane, como pais adotivos, que asseguram o estrelato e o talento do elenco secundário na Terra, ao longo da educação do jovem. Não deixa de ser curiosa e absolutamente eficaz a estratégia de contar o crescimento de Kal, Clark, através de flashbacks, aprofundando a força dramática da história pelo lado mais intimista da personagem, sem jamais descurar o ritmo da ação principal, mais direcionada para o confronto. É um contraponto necessário que sedimenta a estrutura da obra e a impulsiona, permitindo escapar ao vazio emocional pelo qual pecam muitos semelhantes. Afinal, é por meio dos recuos que sabemos o quão diferente e estranho se sentiu Clark ao longo dos anos, tantas vezes desconfortável com a sua natureza extra-terrestre, com os seus poderes, sobrenaturais para o comum dos seus pares. As dificuldades da adaptação, a crise de identidade, o dilema moral: o poder da escolha entre fazer o bem ou o mal. Nesse aspeto os pais adotivos foram preponderantes, nomeadamente o pai:

Jonathan Kent: You just have to decide what kind of a man you want to grow up to be, Clark; because whoever that man is, good character or bad, he's... He's gonna change the world.

É essa a educação que fará frente, mais tarde, à amoralidade de um General Zod (Michael Shannon, dotado de frieza e atroz tenacidade), que insistirá no genocídio cruel e irrefletido e na terraformação egoísta. A respeito do tom, note-se que o mesmo é dramático do princípio ao fim, pontualmente humorado por breves comic-reliefs que jamais caem na comédia corriqueira. Amy Adams não sobressai especialmente (talvez se exija mais dela em futuras continuações), mas creio que Henry Cavill cumpre com competência este Super-Homem mais humano e moderno, com tantas fraquezas e dúvidas existenciais, provavelmente mais sensual do que nunca.

A história não é nova, somente a roupagem. Mas é bastante eficaz. O mito continua vivo.


A ÁRVORE DA VIDA (2011)


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HOMEM DE AÇO (2013)

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A ÁRVORE DA VIDA (2011)

PONTUAÇÃO: EXCELENTE
★★★★
Título Original: The Tree of Life
Realização: Terrence Malick
Principais Actores: Brad Pitt, Jessica Chastain, Sean Penn, Dalip Singh, Joanna Going, Tye Sheridan

Crítica:

A ODISSEIA DA VIDA

Unless you love, your life will flash by.

Monumental obra-prima de Malick, A Árvore da Vida compreende, na sua inspiração pura, o espelho da criação divina: a totalidade do cosmos, a intemporalidade, a universalidade. Nasce como a música, livre, esvoaça como o sopro do vento. Flui como o rio, refletindo a nossa eterna busca de sentido, perante os mistérios insondáveis de Deus, qual sol omnipresente. É uma experiência poderosa, profundamente religiosa, enraizada nas nossas maiores inquietações interiores. É como... a banda sonora da vida, que se quer escutar ao morrer, numa prece ou sussurro, na experiência do derradeiro apaziguamento. O sublime passo que antecede a fragmentação das memórias... em átomos.

Pedaço do éter (muito mais do que de cinema), vive do permanente confronto de forças antagónicas, sobre as quais jaz um equilíbrio essencial. There were two ways through life - the way of nature and the way of grace. You have to choose which one you'll follow. A natureza, mãe e abundante, porém impiedosa e atroz, e a graça, da sensibilidade e do amor, mas que contraria e nos instiga a percorrer um determinado caminho. A genial sequência da génese, com que se principia o universo e que eclode ao som arrepiante da Lacrimosa, transcende-nos em beleza e significado. É uma viagem no tempo, interpretação simultaneamente artística e científica da origem, por meio da qual se tenta expurgar a devastadora dor da perda - a morte supostamente contra-natura de um filho - que as personagens de Jessica Chastain e Brad Pitt sofrem nos minutos primeiros do filme, in media res. Quão intensos sãos os atores; no olhar, no toque, gritantemente humanos nas suas performances e tão perfeitos nas suas personagens. Perante o espetáculo arrebatador e incomensurável, o que significa ou representa uma morte humana? É esse o entendimento que o filme procura. Porque morremos? Que mal fizemos? Que Deus é Deus, que nos tira os nossos. Terão sido realmente nossos - seremos realmente nossos, afinal, ou não passaremos nós de matéria, parte da criação? És pó e em pó te tornarás (Génesis 3:19).  

Life goes on. People pass along. Nothing stays the same. Se há coisa que relembramos com a sequência da génese, é que o universo se encontra em constante mudança, em permanente transformação. Mesmo que sigamos o caminho da graça, a natureza há-de sempre lembrar-nos quem somos, de onde viemos e para onde vamos. A vida consiste no caminho, e dar-lhe sentido não significa necessariamente decifrar todos os segredos. Porque só Deus é Deus. Look: the glory all around us, trees, birds. I dishonored it all and didn't notice the glory. A foolish man.

Em seguida, a elegia percorre o caminho da graça, esperançoso e pleno. A odisseia da vida continua, com magistral e portantosa arte de filmar; note-se a delicadeza do movimento de câmera ou o deslumbre constante que é a fotografia de Emmanuel Lubezki: a entrega dos corpos ao sentimento, a dádiva de ser pai... quão redentora se revela a imagem de um pé de um filho recém-nascido - tão frágil e terno - na mão de um pai feito homem, deslumbrado e orgulhoso da sua criação feito Deus. A criança cresce e a educação desenvolve-se entre o afeto e a ingenuidade da mãe, que os educa entre as fraquezas, a permissão e a liberdade, e a severidade e a tenacidade do pai, que as educa entre a força e as restrições, pelos limites. Apesar de opostas, ambas as forças se revelam, mais tarde, fundamentais para o equilíbrio do ser humano enquanto adulto, na sua relação consigo e com os outros. Sem reconhecer a autoridade e o não, não haveria dilema moral, a criança só faria o que quisesse, desprezando o respeito. Pelos erros se confrontará com a fatalidade e as consequências da irresponsabilidade. Pelo amor, lembrará sempre a fonte da união. Mother. Father. Always you wrestle inside me. Always you will. O crescimento, tantas vezes cruel para os próprios e para tantos quantos os rodeiam, matura-se com esta perceção e aceitação. A Árvore da Vida não esquece ainda o ramo da rivalidade entre iguais, entre irmãos, ou a rivalidade edipiana entre filho e pai, pelo amor da mãe. A rivalidade que é inerente à noção de família e que potencia a evolução.

Só a morte ou a enfermidade, essas certezas malditas e sacramentais, nos interrompem o caminho da graça e nos devolvem, portanto, à natureza. Podem tardar, mas vêm sempre. Por isso, sonhamos com o reencontro impossível com os nossos entes queridos do passado, que jamais se nos desvanecem no esquecimento. Daí o final felliniano, tão marcadamente simbólico, com que Malick fecha a sua demanda metafísica: um deambulante Sean Penn, saído da altivez da transparência citadina, dos mais limpos e vazios desertos, das suas recordações mais remotas - e no entanto tão incessantemente presentes -, agora entre os seus, na praia do adeus. Sonhamos, pois, que o que vem no fim é... a merecida absolvição. A visão onírica chega a tornar-se perturbadora, na sua estranheza e tom lúgubre; não obstante consegue a façanha de nos encher o coração de tranquilidade e confiança, simultaneamente. Por fim, estamos em paz, sentimos. É como se vislumbrássemos à luz do dia as maravilhas do mundo uma última vez e fechássemos os olhos, anoitecendo para o eterno descanso... Prontos para acordar novamente.

Se não o entender, contemple-o, oiça-o e sinta-o. Filmes como A Árvore da Vida não só são raríssimos como absolutamente admiráveis, capazes de nos assolar e significar a existência com uma força meteórica e encantatória.


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CINEROAD ©2020 de Roberto Simões