domingo, 16 de abril de 2017

O MENTOR (2012)

PONTUAÇÃO: MUITO BOM
★★★★ 
Título Original: The Master
Realização: Paul Thomas Anderson
Principais Actores: Joaquin Phoenix, Philip Seymour Hoffman, Amy Adams, Laura Dern, Rami Malek, Jesse Plemons, Price Carson, Mike Howard, Katie Boland, Ambyr Childers, Jillian Bell, Joshua Close, Madisen Beaty

Crítica:

O SABRE DIVIDIDO 

 I don't think Freddie is as committed to the cause
as the cause is committed to him. 

Por vezes, podemos encontrar mais verdade numa apreciação negativa do que numa positiva. A internet é um universo por demais vasto e rico, onde abunda a leitura copiosa e superficial e escasseia, definitivamente, o pensamento próprio. Entre a crítica dita profissional e o exercício da cinefilia mais apaixonada ou dedicada, considerada amadora, podemos encontrar um oceano de opiniões contraditórias acerca de um determinado filme. É assim com todos os filmes. É assim com tudo. Alguns filmes, todavia, pela sua natureza ambígua e, decididamente, mais vaga, tendem a clivar posições de forma ainda mais categórica e contundente. É o caso objectivo de The Master.

Paul Thomas Anderson é um nome consensual no panorama cinematográfico actual - a sua filmografia não abrange, ainda, muitos títulos, mas a genialidade de obras como Magnólia ou Haverá Sangue fala por si e não deixa espaço para dúvidas. Talvez por isso mesmo o fascínio sobre The Master seja maior. É um objecto de interpretações memoráveis, de imagens altamente magnéticas e, no entanto, ao fim da primeira visualização, estranhamente bizarro e profundamente enigmático... se nos perguntarem - ou se nos perguntarmos - qual o tema do filme, o que raio respondemos nós? Este sentimento é comum à generalidade dos espectadores, críticos ou não críticos, aquando da primeira visualização. Assistido o filme, ainda que não compreendido ou inteira e devidamente percepcionado (se é que isso é possível num filme como este), é o momento para considerações, comentários e opiniões. O que dizer, então, de um filme como este? Admitimos que nos aborreceu e que nos alheámos, durante a sua exibição, em pensamentos distantes? Que P. T. Anderson se perdeu nas suas ideias e que não lhes encontrou o rumo, o sentido? Não, isso seria assumir a nossa incompetência intelectual. Concluimos então que gostámos da proposta, que é um filme complexo, mas que P. T. Anderson é um magistral realizador, ainda que o I didn't get it nos assombre a consciência? Não podemos dizer que não gostámos de um filme do cineasta; afinal, somos cinéfilos de culto. Passada a ironia, eis-me chegado ao ponto crucial do meu raciocínio: há mais verdade em dizer que não se gostou quando efectivamente não se gostou ou não se compreendeu do que dizer que se gostou meramente por uma questão de moda ou de pertença. A maioria dos textos que encontrei sobre o filme derivam de uma primeira visualização e, repito os adjectivos, são tão copiosos e superficiais que não lhes encontro, neles, qualquer verdade. Serei o único a partilhar desta sensação?

Eu assisti a The Master, sei como pode ser tedioso e maçador; não posso negá-lo. Não é um filme para todos e não é um filme para todos os dias. Com isto não quero dizer que seja um mau filme, da mesma forma que um filme divertido e empolgante não é, só por isso, um bom filme. Mas percebo o julgamento detractor - na minha opinião leviano - que recai sobre o filme. Mais vale, neste caso e humildemente, creio, admitir a nossa pequenez perante o génio e assumir a necessidade de mais visualizações para um melhor entendimento da obra. Até porque The Master não tardará a chamar-nos para mais encontros. Talvez tenhamos algo a dizer quando o filme crescer em nós, se porventura crescer em nós, um dia. Ou então, mais vale ficarmos calados. Não temos que opinar sobre tudo o que vemos ou experienciamos - e muitas vezes esquecemo-nos disso. Sobretudo se não temos nada a acrescentar. Por isso, não escrevo sobre todos os filmes que vejo. E quando o faço, procuro pensar, reflectir, pesquisar, estudar e novamente pensar e formular. Por vezes, à segunda ou terceira visualização e perante o prazer da redescoberta, chego a reformular. Os filmes, como nós, são organismos vivos - e ganham vida precisamente pelo diálogo. Sob esse prisma, The Master assemelha-se a uma fonte inesgotável. E à medida que envelhecemos, sabemos, esse é um sinal inequívoco de que estamos perante um muito bom filme.

Tecido o breve manifesto sobre a pertinência da crítica, continuemos a dissertação sobre a natureza intricada da obra. Na verdade, The Master é um filme sobre a dualidade e sobre a frustração de expectativas, pelo que propicia naturalmente este tipo de discussão. A maior parte das suas cenas começa in media res e desvanece na seguinte sem que seja propriamente concluída. A narrativa ignora a tradicional estruturação em três actos e escapa a um clímax claro, pelo que o filme acaba elusivamente. Nunca é tácito, o rumo dos acontecimentos ou o tema da abordagem, dado que todo o filme espelha as suas personagens: seres à deriva, com o futuro imprevisível. Falo mormente de Freddie Quell, fenomenal desempenho de Joaquim Phoenix - mais magro, semi-curvado e de mãos na anca, braços arqueados, a falar sobretudo por um dos lados da boca, absolutamente irascível e agressivo, assolado pelo desnorte. De perturbado veterano de guerra a fotógrafo temperamental e problemático, de agricultor fracassado e tóxico a céptico e depois aplicado discípulo, sempre mergulhado no álcool, sempre viciado em sexo. Mas não falo menos de Lancaster Dodd, intensa e brilhante performance de Philip Seymour Hoffman, carismático líder d'A Causa, um novo culto religioso e filosófico, criado pelo próprio, mais ou menos baseado na Cientologia. Os dois, Freddie e Dodd, são como opostos e, ao mesmo tempo, o espelho um do outro. São como dois gumes de uma mesma espada. O primeiro representa o ser humano mais selvagem e animalesco, que se deixa dominar pelo impulso, desejo ou instinto, pelas necessidades mais fisiológicas. Dodd chega a compará-lo com um dragão, possante e indomável. No entanto, é do seu dragão interior que Dodd tenta escapar, pelo pensamento, pela palavra. O pensamento e a palavra são, portanto, a sua espada, capaz de matar o monstro e de purificar o espírito. Esse é o secret to living in these bodies that we hold, que o próprio afirma ter descoberto, e a essência d'A Causa. A sua doutrina não é, portanto, senão um escape à sua essência natural, pelo auto-controlo, procurando não ser escravo das emoções: Man is not an animal. Man is an enternal spirit.

A partir do momento em que as vidas de ambos se cruzam, nasce uma relação de fascínio mútuo. O primeiro, que simplesmente vive o seu ego sem se preocupar com os outros, jamais se auto-questionou - e, se alguma vez o fez, satisfez-se e saciou-se rapida ou momentaneamente, pela masturbação. O segundo criou uma ilusão, procurou atribuir-lhe um sentido e, na sua hipocrisia fundamentalista, encontrou conforto e apaziguamento às suas dúvidas existenciais. Na sua necessidade de evangelizar a humanidade, como se ditasse a verdade, amainou o ego. Ao primeiro agrada-lhe a companhia do segundo porque finalmente cessa a sua errância, estabiliza e encontra alguém que consigo se preocupa, decidido a curá-lo. Como se fosse encontrar a salvação ao se tornar quem não é. Este é o princípio da atracção de novos fiéis e seguidores para um determinado culto. O segundo agrada-lhe a companhia do primeiro porque 1) poderá fazer dele uma cobaia para os seus métodos curativos e 2) sabe que Freddie é tudo o que não consegue ser ou não tem coragem para ser, na sua organização simulada: genuíno e visceral. Isto lembra-me, de certa forma, os heterónimos de Pessoa, Alberto Caeiro e Bernardo Soares - o primeiro o anti-metafísico e o segundo, tal como o ortónimo, amaldiçoado por pensar demais e condenado pela consciência de todas as coisas.

Por se tratar de um debate interior, suscitado por Dodd, a maior parte dos planos são fechados e fixos, ou de movimentos muito subtis. Ainda assim, de uma simetria impressionante, ao melhor estilo de Wes Anderson. Como os dois gumes da espada, perpetuando a dualidade. Quando a câmera se move mais é sobretudo num plano ou outro em que Freddie se movimenta ou caminha. E quando raramente o plano abre é como se uma lufada de ar reanimasse um corpo arquejante, lembrando-nos a beleza da natureza: em campo aberto, fugindo Freddie desenfreadamente, ou em pleno deserto, desaparecendo de mota e a alta velocidade no horizonte. Como se na natureza encontrasse o caminho da libertação ou o caminho para casa, longe do confinamento dos espaços fechados. Freddie, sabemos, não é um animal de cativeiro. O azul profundo do mar, que ciclicamente pontua a obra, enche-nos da mesma sensação de liberdade ou de plenitude - perante a beleza e a redentora simplicidade da natureza, qual a pertinência dos métodos exaustivos d'A Causa? A religião é um porto de abrigo para todos os que consigam viver sobre essa alçada. Todos os restantes, se tentados, enfrentarão um teste à paciência e à sanidade mental. Não são necessariamente sem-abrigo. Simplesmente prosperam noutro tipo de construção. Até determinado ponto, Freddie e Dodd são perfeitamente incompatíveis. Simultaneamente, é como se uma espécie de afecto e ligação emocional - animalesca, completamente animalesca e pura e incontrolável - os unisse. Note-se como os dois rebolam pelo chão, como cães, quando Freddie é libertado da prisão. Ali rebola a verdade. Desse ensinamento poderá Dodd tirar as suas próprias conclusões: nem sempre as ideias são mais importantes. Do mais básico sentimento resulta o motivo da união entre os seres humanos - e a real felicidade. Quem é o mestre de quem, às tantas, já não se sabe.

As insólitas composições de Jonny Greenwood - uma vez mais repetitivas e compulsivas, como em Haverá Sangue - acompanham, gozam, satirizam, ridicularizam e expõem. A fotografia de Mihai Malaimare Jr. é um prodigioso portento de enquadramentos, atribuindo a tonalidade à viagem aos saudosos anos 50 do século XX, para a qual contribuem decisivamente também a cenografia e decoração de David Crank, Jack Fisk e Amy Wells e o guarda-roupa de Mark Bridges. Cenas memoráveis são mais do que muitas, abrilhantadas pelo formato 65/70mm e pela excelência dos actores, a que se junta Amy Adams. Podia referir a primeira sessão frente-a-frente entre Freddie e Dodd, mas a minha cena de eleição é a da prisão. Uma vez mais, dividida ao meio: do lado direito, a cela de Dodd - cabisbaixo, meditativo - e do lado esquerdo a cela de Freddie - explosivo, cheio de raiva e força, quebrando ao pontapé a sanita em cacos... Que momento emblemático e por demais representativo da essência do filme. É a sinédoque perfeita.

Tenho a certeza de que ainda vou assistir a The Master mais vezes. A cada vez que o vejo, é ainda mais hipnótico e fascinante e revelador sem deixar nunca de ser misterioso. Um filme singular e de puro deleite; em tudo, extraordinário.

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Nota especial para o lamentável título português.
É daqueles que me recuso, inevitavelmente, a utilizar.

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