domingo, 2 de fevereiro de 2014

O HOMEM QUE VEIO DO FUTURO (1968)

PONTUAÇÃO: MUITO BOM
Título Original: Planet of the Apes
Realização: Franklin J. Schaffner
Principais Actores: Charlton Heston, Roddy McDowall, Kim Hunter, Maurice Evans, James Whitmore, James Daly, Linda Harrison, Robert Gunner, Lou Wagner, Woodrow Parfrey, Jeff Burton, Buck Kartaliandlunddlund

Crítica:

PLANETA DOS MACACOS

Somewhere in the universe there has to be
 something better than man. Has to be.

O Homem que Veio do Futuro, de 1968, é tudo aquilo que sempre quisemos encontrar num filme da saga Planeta dos Macacos (exceto o título português, naturalmente, que não lembra o diabo). Mais: é tudo aquilo que sempre quisemos encontrar e que sempre deveríamos encontrar num filme de ficção científica, de pura ficção científica: um cenário hipotético, cientificamente plausível e estudado, capaz de convocar alguma discussão filosófica ou sociológica. Viajar ao passado e descobrir a obra original de Franklin J. Schaffner (adaptada livremente a partir do livro de Pierre Boulle), revela-se, por isso, uma experiência absolutamente reconfortante, estimulante e, intemporalmente, pertinente.

É Planeta dos Macacos - tratemos já dessa correspondência imaginativa e hedionda que é o título português - mais uma profunda dissertação filosófica e sociológica do que o filme de entretenimento e aventuras de Hollywood? Não, não é. Desenvolve-se ao sabor do perigo, do suspense e de sucessivas e empolgantes sequências de ação, bem humoradas pelo carácter pedante e provocador do não menos eloquente e cínico comandante Taylor, de Charles Heston; o que não invalida que se mantenha ao longo de todo o filme um equilíbrio extremamente interessante entre ambas as dimensões, a do argumento inteligente (assinado por Michael Wilson, o mesmo de Lawrence da Arábia, e por Rod Serling) e a do entretenimento, até ao célebre e extraordinário twist final. Neste aspeto, muitos dos acéfalos blockbusters de Hollywood da atualidade, que descuram a história em prol do último grito dos efeitos digitais, teriam muito a aprender com este Planeta dos Macacos. As questões são mais do que muitas: a relatividade do tempo, a existência de vida e de inteligência extra-terrestre, a evolução do homem a partir dos símios ou a evolução dos símios a partir dos homens... Planeta dos Macacos é, provavelmente, das mais interessantes propostas da ficção científica, pela visão e questões que levanta. Afinal, inverte a condição humana e por meio dela a perspectiva das coisas: algures num futuro distante, decorre o ano de 3978, uma equipa de astronautas americanos - liderada pela personagem de Heston, que despreza a sua própria espécie: Does man, that marvel of the universe, that glorious paradox who sent me to the stars, still make war against his brother? Keep his neighbor's children starving? - despenha-se num planeta incógnito, onde os mais variados símios são as espécies dominantes e mais evoluídas, no topo da cadeia e da lógica, e os humanos são a espécie mais primitiva que abunda nas redondezas, sem fala ou especial inteligência desenvolvida, subjugada à escravidão e ao tratamento brutal e humilhante dos macacos, que produzem armas de fogo. Os gorilas são os polícias e militares, os oragotangos os líderes políticos, espirituais e administrativos e os chimpazés os cientistas e intelectuais. A reflexão impõe-se à medida que acompanhamos Taylor, feito prisioneiro, e observamos as características culturais, sociais e religiosas dos mais poderosos. Aqui, somos os outros - é impossível negar as semelhanças que temos com os nossos parentes evolutivos e perguntarmo-nos a nós próprios e se? Não há como outrar-nos para apreciarmos devidamente o nosso reflexo no espelho. 

A doutora Zira (Kim Hunter) e o seu noivo e colega de investigação científica, o arqueólogo Cornelius (Roddy McDowall) - ambos macacos - são os estudiosos da espécie humana, defensores de Taylor bright eyes, inclusivé em tribunal. Estão fascinados porque descobriram finalmente um exemplar com nome próprio, capaz de pensar, escrever e falar, que afirma ter vindo de outro planeta onde reinava uma outra espécie e uma outra cultura que não a dos macacos, a humana. Os políticos recusam-se a acreditar no - aqui - animal e a aceitar a polémica ideia de que os humanos são capazes de inteligência própria; consideram tal descoberta uma ofensa às sagradas escrituras, capaz de desafiar a sua autoridade e de abalar os alicerces da sua sociedade, assim como a teoria da evolução de Darwin abalou os alicerces das sociedades humanas, construídas a partir do verbo bíblico. Os humanos são animais odiosos, que lhes parecem todos iguais (da mesma forma que, por exemplo, os chimpazés nos parecem, fisicamente, todos iguais): roubam-lhes alimentos, destroem-lhes as florestas, são capazes de grupos organizados, mas não lhes são senão dignos de museu, de algumas experiências e de pouco mais. Em tempos chegaram a ser animais domésticos dos macacos, agora merecem ser destruídos.

O doutor Zaius (Maurice Evans) é o símbolo máximo da fé e da ciência - there is no contradiction between faith and science... true science!, diz ele, mas eu diria que é um hipócrita representante de ambos, a única coisa sagrada para ele é a obscuridade. É o principal opositor aos avanços científicos da equipa de Zira e Cornelius; por conseguinte, o principal inimigo do recém-chegado Taylor, causador de todos os distúrbios, que poderá ser castrado para não reproduzir a sua inteligência a gerações futuras. Zaius esconde a verdadeira razão de tanto ódio para com os humanos, que se revelará a seu tempo, quando as principais personagens penetrarem na Zona Proibida e, nas escavações da praia, encontrarem uma prova irrefutável da existência de inteligência humana anterior ao milénio da sociedade símia: uma boneca humana... que fala. Would an ape make a human doll that talks? Quando Zaius finalmente conta a as razões pelas quais odeia os humanos, Taylor fica desarmado e remete-se ao silêncio. I have always known about man. From the evidence, I believe his wisdom must walk hand and hand with his idiocy. His emotions must rule his brain. He must be a warlike creature who gives battle to everything around him, even himself. Pela primeira vez, estão de acordo. A citação de Zaius estabelece automaticamente um paralelo com as considerações iniciais de Taylor ainda na nave espacial (aquelas que acima citei, em que o humano critica as atitudes da sua própria espécie) e o mútuo acordo alavanca a carga semântica e simbólica da poderosíssima cena final, quando a Estátua da Liberdade aparece no horizonte, qual visão surreal ou pós-apocalítica, enterrada na areia, descobrindo a chocante verdade sobre o passado da sociedade símia e do planeta onde estão. Taylor está, afinal, em casa, na terra. Como se outrora os seres humanos se tivessem auto-destruído no meio de tanta evolução tecnológica. A mensagem é clara, ainda para mais quando em 1968 o mundo vivia na ameaça da Guerra Fria e das devastadoras consequências de eventuais ataques nucleares. O futuro, como sempre, é uma incógnita, construída a partir do presente. Fica a proposta de reflexão. 

Zira: What will he find out there, doctor? 
Zaius: His Destiny. 

Os planos iniciais filmados por Schaffner, que antecedem o momento em que a nave triangular se despenha no mar, rodam a variadíssimos graus, já augurando uma reviravolta na ordem das coisas ou um mundo realmente virado ao contrário. A fotografia de Leon Shamroy confere uma beleza e uma grandiosidade quase épica ao filme, sobretudo quando enquadra e foca em profundidade extensas paisagens naturais, a perder de vista. A exótica banda sonora de Jerry Goldsmith, nem sempre de fácil digestão, tornou-se na primeira banda sonora completamente atonal num filme de Hollywood. A direção artística é determinante para a autenticidade daquela cultura projetada - note-se por exemplo a criatividade arquitetónica das casas dos macacos, que devem tanto a Gaudí - mas nenhum departamento é tão fundamental para essa autenticidade e credibilidade como a extraordinária caracterização de John Chambers que, juntamente com os figurinos (Morton Haack), nos fazem acreditar naqueles atores mascarados, naqueles macacos. É pelo excecional trabalho de caracterização que se dissiparam os mais que esperados riscos de fracasso da obra, que desde o primeiro instante assombraram a produção. Um filme repleto de macacos falantes poderia ser, afinal, completamente risível e ridículo. 

Planeta dos Macacos acabou por tornar-se um tremendo sucesso comercial, nos Estados Unidos e em todo o mundo. Desencadeou uma franquia sem precedentes - até 1973 foram lançadas quatro sequelas - e um lucrativo merchandising que se mantém até hoje, sendo um dos inegáveis precursores do modelo comercial que tão bem conhecemos no cinema norte-americano dos nossos dias. 

É, sem qualquer dúvida, um clássico absoluto.

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