quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

CAMINHO PARA PERDIÇÃO (2002)

PONTUAÇÃO: MUITO BOM
Título Original: Road to Perdition
Realização: Sam Mendes
Principais Atores: Tom Hanks, Paul Newman, Tyler Hoechlin, Jude Law, Jennifer Jason Leigh, Stanley Tucci, Daniel Craig, Dylan Baker, Ciarán Hinds, Liam Aiken, Rob Maxey 

Crítica: 

A VINGANÇA DE UM GANGSTER

Natural law. 
Sons are put on this earth to trouble their fathers. 

Caminho Para Perdição - até à data, a primeira incursão de Sam Mendes (Beleza Americana) pelo filme de gangsters - é de um virtuosismo clássico absolutamente notável e arrebatador. Pairam sobre ele - o realizador chegou a assumir as influências, facilmente identificáveis - as sombras d'O Padrinho, de Francis Ford Coppola, de Bonnie e Clyde, de Arthur Penn, ou do mais ambicioso Era Uma Vez Na América, de Sergio Leone. O certo é que Caminho Para Perdição, a partir das novelas gráficas de Max Allan Collins e Richard Piers Rayner, jamais fica na sombra dessa tradição. Pelo contrário, ao mesmo tempo que homenageia o passado e as suas referências, alcança um lugar próprio, inquestionavelmente maduro, digno e meritório.

É, primeiramente (e primeiramente porque nos vem imediatamente a memória), de uma beleza visual assombrosa e hipnótica, quase monumental; triunfo inequívoco desse lendário diretor de fotografia que foi Conrad L. Hall, que aqui assinou o seu último filme - filme que, aliás, lhe é justa e oportunamente dedicado. Há cenas e momentos de um esplendor e magnetismo puros e de uma técnica exímia. A atmosfera é fria como a neve, tensa como a chuva persistente, negra como num filme noir. A luz, ora branca ora em tons esverdeados, descobre e esconde o mistério, cativa-nos a atenção e imerge-nos nas voltas e reviravoltas da história.

Note-se, por exemplo, a cena em que Michael Sullivan Jr. descobre a sangrenta e tão-pouco heróica profissão do homónimo pai Michael Sullivan (Tom Hanks, tão íntegro e sério na sua personagem, até na colocação da voz): a câmera, qual curioso, está atrás da porta, em frente da porta as duas pernas do pai (de metrelhadora em punho, depreendemos pelo som e mais tarde pelas cápsulas que caem no chão) e ao fundo o interrogatório ao inoportuno Finn McGovern, que cairá em slow motion, depois de perfurado por incontáveis balas. A montagem de Jill Bilcock (Moulin Rouge!) serve os propósitos da narrativa, impondo uma precisão excecional e um ritmo assaz eficiente. 

Tendo descoberto o segredo, Michael significa agora um risco para toda a organização Rooney, essa máfia disfarçada de charme na América dos anos 30 do século XX. É por isso que o descendente e herdeiro Connor Rooney (Daniel Craig) se apressa a matá-lo, mas falha o seu impulso. Fica-se somente e frustrantemente pelo irmão mais novo e pela mãe. Quando descobrem que a tragédia se abateu sobre a sua família e sobre os seus destinos, os Michael Sullivan fogem. Não tardarão a ser ferozmente perseguidos. O velho John Rooney (intenso e memorável Paul Newman, num dos seus últimos papéis, a quem Conrad L. Hall já havia filmado no ligeiro e divertido Dois Homens e Um Destino, de 1969) representa para o Michael de Hanks um verdadeiro pai; não obstante, o plano do Sullivan está traçado. Só pela vingança e pelo crime poderá assegurar não só a sua honra como - e tão mais importante - a sobrevivência do filho. Curioso que a epígrafe com que me iniciei, proferida pelo Rooney de Paul Newman a dado momento no filme, acabe, ironicamente, por se ajustar tanto aos Sullivan como aos Rooney. É a chamada ironia trágica.

When people ask me if Michael Sullivan was a good man, or if there was just no good in him at all, I always give the same answer. I just tell them... he was my father.
Michael Sullivan Jr.  

As grandes cenas sucedem-se, como numa antologia. Há o take introdutório ao sádico e repugnante fotógrafo dos mortos Harlen Maguire (Jude Law, num brilhante desempenho, de assustadores dentes e nojentas unhas compridas), contratado pelos Rooney para perseguir Sullivan e o filho. Sob o efeito vertigo, o contraste entre a combinação do movimento da câmera para a frente e o zoom out resulta num plano tremendo.


Mais tarde, cai a chuva sobre a iluminação soturna de uma rua noturna e vazia, até que para ela saem seis homens de negro - deles só se vêem as silhuetas e os contornos dos chapéus, sobretudos e de alguns chapéus de chuva. Espera-os um automóvel do outro lado da rua. As chuva silencia-se e dá lugar à música de Thomas Newman, ao suspense dramático. O motorista está morto. Pausa. Vêem-se tiros, mas não os ouvimos. Escutamos apenas a contida música. Ao fundo, um clarão. A câmera roda e os homens caem lentamente, um atrás do outro, exceto um: resta o até então intocável ancião, patriarca da máfia. Nas suas costas, o justiceiro pela vingança avança na escuridão. Torna o som da chuva, Rooney vira-se e confirma: é Sullivan. I'm glad it's you. Não há como voltar atrás: o seu caminho está corrompido e perdido. Só há esperança, agora, para o filho; cabe-lhe a ele garantir a segurança essencial para que esse futuro seja possível. E, por isso, a vingança cumpre-se. Pelo assassinato do pai simbólico, a ação ganha uma dimensão profundamente trágica, quase edipiana. 


Não obstante, para mim, o plano mais arrojado, trágico e magistral é aquele derradeiro, perto do desfecho: a câmera, do exterior da casa, enquadra a janela. No reflexo do vidro, o espelho da felicidade: o areal e as águas do lago Michigan, Michael e o cão brincam pela praia, livremente. Ouve-se a calmaria das ondas, depois de toda uma viagem marcante e conturbada. Do outro lado do vidro, o pai Sullivan vislumbra a paisagem, qual miragem. Assola-nos um mau pressentimento e, num ímpeto, um tiro, dois tiros: o peito de Sullivan, já cambaleante, mancha-se de sangue. O vidro é salpicado pela a cor da morte. Hanks cai, fatalmente ferido, abismado. Descobre-se um espectro ao longe, no interior do quarto: o fotógrafo prepara o seu último retrato. Tudo num jogo de transparências, tudo num único plano. Que poderoso pedaço de cinema.

Veredito? Puro requinte, obra sublime. Um filme belíssimo e completamente imperdível. Caminho Para Perdição, dizia, alcança [nessa tradição] um lugar próprio, inquestionavelmente maduro, digno e meritório; e remato: entre os melhores filmes de gangsters até hoje filmados.

3 comentários:

  1. concordo, um dos filmes que mais me marcou até hoje!

    obrigada pela passagem no blog! e obrigada pelo fantástico comment! bj

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  2. É mesmo o meu preferido de Sam Mendes. Grande filme. Também me ficou a martelar depois de o ver. Acho que ainda assim só peca um pouco na excessiva preocupação técnica. Dá a sensação, por vezes, que o argumento fica em segundo plano em detrimento de uma cena, de um plano, ou até mesmo de certas sequências.

    Mas enfim, nada que retire a excelente obra que é, tecnicamente a nível visual e sonora muito boa, cuidada e sensível. O argumento também é de uma simplicidade e complexidade dramática muito perspicaz e assaz emocional. Gostei mesmo muito. Tenho de rever um dia destes.

    abraço

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  3. FES: Estamos então de acordo. Que filme magistral.

    JORGE: Para mim, é um dos ;) Adoro o MÁQUINA ZERO, que, tal como este, tenho que rever de modo a tecer uma crítica bem mais aprofundada. Não sei se aqui neste caso os valores de produção abafarão o argumento, creio que não. Considero o filme um objecto refinado e de muito bom gosto, muito bem doseado. E belíssimo, claro! Aquela fotografia é qualquer coisa de extraordinário! Conrad L. Hall era magnífico.

    Cumps.
    Roberto Simões
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