sexta-feira, 23 de agosto de 2013

A PALAVRA (1955)

PONTUAÇÃO: EXCELENTE
★★★★
Título Original: Ordet
Realização: Carl Theodor Dreyer
Principais Actores: Henrik Malberg, Emil Hass Christensen, Cay Kristiansen, Birgitte Federspiel

Crítica:

O MILAGRE

A Palavra é um daqueles filmes que cresce em nós, espectadores, após a sua visualização. Introduz-nos a um cenário rural, de céu resplandecente e luminoso. É obscuro, não obstante, nos recantos interiores da fé e da humanidade. Dreyer filma num a preto e branco frio e desolador; neste jogo de contrastes quase fantasmagórico é invocada a memória e a influência do expressionismo alemão, não raras vezes enaltecido - da caracterização à expressão facial dos actores - no esmagador poder de um close-up. Parece ter herdado, até certo ponto, também, a aura do cinema mudo.

A Palavra assume-se como um filme de personagens, que se descobrem entre longos diálogos ou solilóquios e demoradas sequências. Se, por um lado, é nessa estética inconfundível que a alma do cineasta se revela - como se a arte fosse, ela própria, um processo de transcendência - é por ela, por outro, que se constroem a densidade atmosférica e a intensidade emocional necessárias à epifania, que por fim acontece, num clímax tão redentor diegetica como meta-diegeticamente (para o espectador, pois claro). Respondem-se às inquietações da história, às preces e profecias declamadas e, simultaneamente, abre-se caminho a várias interpretações.

A Palavra
teima em parecer-me mais antigo do que realmente é, como se o debate religioso entre famílias, seitas ou grupos pertencesse somente a tempos idos; pelo contrário, continua actual, pertinente e necessário. Afinal, a fé existe e existem as pessoas que se professam nas mais variadas crenças. Intemporal é o amor de pais para filhos, entre irmãos, entre apaixonados. Acreditar na família é, essa sim, a fé fundamental do ser humano, a qual valerá a pena cultivar sempre. É por meio desta fé - deste tipo de fé - que, por mais indiferentes ou estranhos que sejamos ao militarismo destas personagens, nos identificamos com elas. O coração do filme reside nos laços que se estabelecem entre o velho Borgen, patriarca da família, e os três filhos: o céptico Mikkel (marido da graciosa Inger), Anders (perdido de amores pela filha do alfaiate protestante) e o louco Johannes (que por ter estudado demais se julga Jesus Cristo). Tudo isto num tempo - admitem - onde já não há lugar para milagres nem possibilidade alguma destes acontecerem. A que se resume, então, a fé? É esta a questão central deste esmerado (às tantas assombroso) ensaio sobre a religião, a existência entre a vida e a morte e o significado desta passagem.

Da teatralidade da encenação à magistral direcção de actores (não esqueçamos que o argumento concretiza a adaptação da peça de Kaj Munk, a que Dreyer assistira 22 anos antes), passando pela simples mas quase mística manobra e interacção da câmera com a mise-en-scène, eis uma obra de uma humanidade gritante. O essencial, do ponto de vista estético, sobre quaisquer recursos bacocos. O incompreensível, do ponto de vista semântico, sobre a esterilidade e inutilidade das quezílias, suscitadas pela intolerância das confissões mundanas. Nenhum humano detém o valor absoluto; esse, inalcançável, resguarda-se para lá do grande mistério.

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